Quando o corpo fala o que a boca cala
- Getulio Tamid
- 21 de mai.
- 3 min de leitura
Atualizado: 22 de mai.

Em 1893, antes da Psicanálise ser o que conhecemos hoje, um jovem médico Vienense, Sigmund Freud, cruzava os corredores da clínica com mais perguntas do que respostas. Foi nessa fase embrionária que ele conheceu Emmy von N., uma paciente que marcaria profundamente sua trajetória e os alicerces da teoria psicanalítica.
Quem foi Emmy Von N.?
Pouco se sabe sobre sua identidade real — "Emmy von N." é um nome fictício, como era costume na época para proteger o anonimato dos pacientes. O que se sabe é que ela era uma mulher aristocrata, na casa dos seus 40 anos, mãe, viúva e cuidadora compulsiva da família. Uma dessas mulheres que se anula enquanto segura o mundo nas costas.
Ela vivia sob o peso de mil obrigações, muitas das quais autoimpostas, mas profundamente enraizadas nas expectativas sociais do feminino. Quando o corpo dela começou a “falar” o que sua mente não conseguia mais suportar, Freud entrou em cena.
Sintomas - o grito calado da alma
Emmy apresentava espasmos musculares, paralisias faciais, crises de pânico súbitas e, por vezes, surtos verbais em francês — como se estivesse revivendo cenas traumáticas que se infiltravam no presente como espectros mal exorcizados. Frases como “Fique quieto!” ou “Não fale comigo!” surgiam em meio a estados alterados de consciência, que Freud viria a entender como repetições simbólicas de eventos reprimidos.
Esses sintomas, então tratados como manifestações da “histeria”, não eram delírios sem sentido. Pelo contrário: escondiam narrativas não-ditas, dores congeladas no tempo, histórias que não puderam ser contadas — apenas atuadas em forma de repetição.
O tratamento - hipnose, catarses e um passo rumo ao inconsciente
Na época, Freud ainda utilizava o método catártico desenvolvido com Josef Breuer. Sob hipnose, Emmy era levada a reviver memórias traumáticas, e ao expressar as emoções contidas nelas (o que Freud chamaria depois de “Ab-reação”), seus sintomas diminuíam temporariamente.
Mas o que mais impactou Freud foi perceber que os sintomas não eram aleatórios. Havia ali uma linguagem simbólica, um código cifrado do inconsciente. O corpo de Emmy falava aquilo que sua fala censurava. E ali, na escuta atenta de seus lapsos, de suas repetições, nas entrelinhas de suas memórias, Freud começava a desenhar os contornos daquilo que mais tarde chamaria de Psicanálise.
Que momento Freud vivia?
Freud estava em uma encruzilhada. Deixava aos poucos a neurologia tradicional, frustrado com seus limites frente às doenças “da alma”, e mergulhava no território inexplorado da psique. O caso Emmy von N. é um dos primeiros que marca essa virada: da medicina do corpo para a medicina da palavra. Ele ainda não falava em “inconsciente estruturado como uma linguagem” como postulou Jacques Lacan, mas já ouvia os sintomas como um texto a ser decifrado.
E hoje? A histeria acabou?
Longe disso. A histeria apenas mudou de roupa.
Hoje, ela veste tailleur, responde e-mails fora do horário comercial, leva os filhos na escola, paga boletos, gerencia reuniões, disfarça crises de ansiedade com filtro do Instagram e engole o choro no banheiro antes de voltar para a mesa de trabalho.
A mulher moderna, assim como Emmy, vive entre as demandas do mundo e o esquecimento de si. O corpo continua falando — agora em forma de enxaquecas crônicas, distúrbios alimentares, ataques de pânico, infertilidade “sem causa”, ou burnout com nome bonito em inglês.
A lógica é a mesma: quando o desejo não encontra passagem, ele faz um desvio. E o corpo sofre.
Escutar para existir
O caso Emmy von N. é mais do que uma curiosidade histórica. Ele é um espelho do feminino silenciado, controlado, mutilado pelas exigências externas. É também um convite a escutar — não apenas o outro, mas a si mesmo. Escutar com radicalidade, como Freud aprendeu com Emmy, aquilo que não se diz, mas que insiste e persiste..
Porque quando o corpo grita, é sinal de que a alma já está rouca há muito tempo.
Comentários